12 de mai. de 2007

Diversidade cultural (digital é linguagem binária)

Por Marcos Dantas

Por definição, na linguagem digital, só existe a alternativa entre 1 e o 0 (zero). Trata-se de de uma taxa muito limitada de diversidade... Preocupa-me mais a diversidade cultural, na medida em que contribua para o enriquecimento social geral e uma visão universal, por isto necessariamente plural, da humanidade. Neste sentido, a política pública tem que ser ativa no sentido de prover, diretamente ou indiretamente, os meios técnicos universais de acesso à informação e de comunicação do conhecimento, e passiva no sentido de não intervir contrariamente à liberdade de expressão, salvo, claro, nos casos aberrantes (abuso sexual, pregação de violência, racismo de qualquer tipo etc.). A política pública também precisa ser ativa (e muito ativa) no sentido de prover educação universal: sem acesso a padrões superiores de educação, ao domínio das línguas de cultura, das ferramentas científico-matemáticas, bem como amplo conhecimento das formas e técnicas de diversas manifestações artísticas (música, pintura, literatura, teatro, cinema), as múltiplas possibilidades de expressão cultural acabam não interagindo entre si, não evoluindo, fechando-se em guetos culturalmente pobres e estranhos uns aos outros.

Divulgação digital

Por Stefanie Carlan da Silveira

Acredito que a relação entre cultura digital e diversidade deve ser bem trabalhada para que as manifestações presentes na rede não fiquem restritas a um determinado grupo social. O ponto de ligação entre os dois conceitos está justamente no fato de que a cultura digital é mais aberta à participação, configurando reconstruções midiáticas nunca antes possíveis. Assim, a diversidade deve ser levada em conta quando se percebe que ampliar o domínio dos processos tecnológicos faz com que mais pessoas se apropriem da Internet e a utilizem conforme os seus interesses e objetivos. Isto não significa dizer que a cultura digital é dar voz a quem não tinha. Todos temos voz, no sentido de que toda pessoa tem algo a contribuir e acrescentar ao debate da sociedade e é esta contribuição que tem a divulgação facilitada através do digital. A possibilidade de intervenção existente na web é um fenômeno que vai mudar a cara dos meios e dos processos de comunicação existentes. No entanto, é preciso ter claro em mente que as barreiras burocráticas e mercantis devem ser derrubadas para permitir o avanço das manifestações diversas da cultura digital.

Banda larga

Por Marcos Dantas
Na medida em que as tecnologias digitais favorecem a interatividade, a questão central é assegurar a todos - pessoas ou grupos - o acesso aos meios que lhes permitam expressar seus sentimentos, idéias ou projetos. Ou seja, a questão central reside na universalização e em políticas universalizantes. Se for dada a cada comunidade a possibilidade de se exprimir em uma rede universal, está dada a ela a condição inicial, na realidade sócio-econômica atual, para expressar a sua particularidade cultural e política. Penso que, hoje, o governo deveria implementar uma real política para universalizar a banda larga no Brasil através de empresas concessionárias de telecomunicações (as atuais ou outras que o venham a ser), já que a estas empresas outorgou-se o mandato público de assegurar a universalização. Noutras palavras, não tem mais sentido prosseguir-se com políticas para universalizar apenas a telefonia fixa (banda-estreita), mas se deve avançar para universalizar a banda-larga com ou sem-fio.

Autoria, © e impulso criativo

Por Felipe Fonseca
Um ambiente aberto de troca de conhecimento, mesmo com a ênfase no questionamento do papel tradicional do autor, não necessariamente é a ausência de autores. Os conceitos de flexibilização do direito autoral propõem que todos podem ser autores, questionando aquele mito renascentista do autor iluminado que conversa com a musa, tem o sopro divino ou um pacto com o diabo. Tratando a criação como acessível a todas as pessoas, na verdade o que a gente propõe é a universalização do direito e da consciência da possibilidade de criação. Não queremos acabar com os autores. Queremos que as pessoas percam o medo de criar. Queremos que as pessoas se apropriem do conhecimento e da cultura como o que são: construções coletivas, dinamizadores de relacionamentos entre pessoas, criadores de identidade, motores da inovação. Se para mostrar isso precisamos em determinado momento de uma idéia sem autor ou de uma idéia com milhões de autores ou de uma idéia com um autor que não existe (quem escreveu a Ilíada mesmo? e a Bíblia?), que seja. O que não podemos é dar mais atenção à legislação ou ao mercado do que ao impulso criativo.

11 de mai. de 2007

Questão social e política

Por Marcos Dantas

Não sei se existe propriamente uma "cultura digital". Existem cultura e culturas com base em unidades culturais mínimas que, através dos significantes e significados linguísticos, organizam a relação entre grupos e comunidades consigo mesmas e com os ambientes sócio-naturais à volta.
O "digital" é, também, antes de mais nada, uma linguagem (binária), mas é uma linguagem meramente instrumental para viabilizar a construção e utilização de ferramentas tecnológicas que facilitam e potencializam a capacidade humana de processar e comunicar informação e conhecimento. Se a diversidade cultural é constitutivamente humana, a linguagem digital e suas tecnologias de suporte podem, na verdade, contribuir mais para uniformizar e padronizar as muitas formas de expressão cultural do que favorecer à diversidade.Isto não é necessariamente ruim, nem necessariamente bom. A diversidade cultural, por um lado, enriquece a humanidade, é patrimônio da humanidade. Por outro lado, não raro, contribui para fundar divisões e conflitos altamente destrutivos, sobretudo quando de natureza étnico-racial ou religiosa. A uniformização digital, assim, pode até favorecer a uma certa redução das taxas de conflitos, mas pode também contribuir para o empobrecimento cultural geral. Em suma, não penso que a questão esteja no "digital", mas sim no social e no político, ou nas culturas sócio-políticas de grupos, comunidades, classes sociais e povos nacionais.

Possibilidade de acesso

Por Irineu Franco Perpetuo

A expansão da internet e das redes informacionais chegou em um momentodelicado para a divulgação das expansão das expressões eruditas na música. A vida de concertos concentrava-se apenas nos grandes centros; os discos,importados, raros e caríssimos, estavam disponíveis apenas em meia dúzia delojas especializadas das maiores cidades; e a publicação e distribuição de partituras havia sido reduzida à beira da inexistência. Some-se a isso aescassez de bibliotecas em geral (e de acervos musicais para consulta emparticular) no país, e a falta de discotecas públicas (locais em que se podem ouvir e retirar discos) para se ter uma idéia dos gargalos que osmeios tradicionais de difusão de cultura impunham à expansão das expressõeseruditas da música no Brasil.A Internet e as redes informacionais chegaram para oferecer possibilidades que mal começamos a explorar, mas que já fazem a diferença paracompositores, intérpretes e aficionados, reduzindo sesivelmente nossadependência dos caprichos de gravadoras, editoras ou agente de concertos. Aweb nos permite ter acesso instantâneo aos grandes mestres do passado, bemcomo aos talentos emergentes; facilita que se conheçam e difundam asprincipais criações da História da Música, bem como as obras que estão, hoje, escrevendo essa mesma História. É claro que a utilização destaspossibilidades será ampliada ou restringida na proporção direta em que seamplia ou se cerceia a liberdade de troca de informação em rede. Seria ironicamente triste se um conceito engessado e ultrapassado de propriedadeintelectual, cristalizado sob a forma dinossáurica do copyright, acabassepor bloquear as estradas que a tecnologia digital está a nos abrir.

Rádio digital

Por Magaly Prado

A adoção do padrão Iboc (In Band on Channel) para o rádio digital noBrasil permite que os mesmos radiodifusores que possuem concessão (mesmoque por tempo determinado por lei) de freqüências de AM e FM permaneçamcom essas concessões. Ou seja, novos radiodifusores ficam de fora daabertura de novas bandas que o sistema digital permitiria e, claro,incitaria uma boa chacoalhada no dial com a democratização desse meio decomunicação.Por enquanto, algumas redes de rádios: AMs como a Bandeirantes, FMs comoa CBN, estão testando o funcionamento técnico do sistema Iboc (apenas aRadiobrás, sediada em Brasília, está interessada no DRM, padrãoeuropeu). O grande problema até então sem solução, é o delay de cerca de6 segundos quando o sinal sai do analógico e vira digital. Mesmo porque,a grande justificativa dos radiodifusores em adotar o Iboc é exatamentea de que com ele podem operar nos dois sinais simultaneamente até quetodos possam trocar seus receptores (o que pode levar anos, seconsiderarmos o preço em torno de U$ 300). Fora isso, outros entravescomo as rádios piratas bloqueando testes de alcance, no caso das \FMs, oumesmo locais onde simplesmente o sinal apaga, provocam dores de cabeçanos engenheiros.Ao pensarmos no conteúdo (o ponto mais interessante), a possibilidade defatiar a banda em 2 ou até mesmo em mais rádios (3 ou 4 só no caso derádios de falação do que em musicais, por conta da perda de qualidadetécnica na compressão) vai propiciar novas rádios diferenciadas,segmentadas. Por exemplo: a rádio Bandeirantes AM finalmente poderáemplacar o projeto de uma emissora 24h esportiva em um dos canais,deixando no primeiro, a tradicional RB (carro-chefe do grupo). Em rádiosmusicais, a divisão de canais pode contemplar novidades da músicaemergente em um e flash back em outro, e por aí vai. Afinal, existemtrocentos projetos de rádios nas gavetas, nem sempre com forte apelopopular, ao contrário, cada vez mais hipersegmentados, como a própriatendência que é tão óbvia em nos demonstrar a diversidade culturalpossível.Bom, não vou entrar aqui em detalhes do que o rádio digital pode nosoferecer como leituras no visor do aparelho como notícias, letras demúsicas, informações de artistas, mapas de trânsito e toda a sorte deimagens em fotos e em vídeos extrapolando o áudio, ok? Deixo para umpróximo texto.O mais importante no momento é saber se teremos ainda tempo de nosmobilizarmos para pelo menos uma discussão mais profunda do padrão a seradotado para não continuarmos nesse esquema fechado, nas mãos de poucos"donos" que historicamente monopolizam as emissoras no dial convencional.

10 de mai. de 2007

"Iconomia"

Por Gilson Schwartz

Acredito que existe uma economia própria da cibercultura tão intensamente que até inventei uma nova "ciência" para dar conta das características da "nova economia", denominando-a "Iconomia". Ela é tema de uma disciplina, na USP, que estamos oferecendo para alunos de engenharia, economia, administração e contabilidade, ciência da computação, comunicações e artes.
Vivemos uma economia em que o valor da informação estáassociado ao processo produtivo de imagens, ícones e idéias compartilhadas em redes digitais. Pode-se dizer que é uma economia digital ou que evolui na medida em que a própria cibercultura se traduz em ecossistemas (já nem cabe falar apenas de mercado), em que o proprietário e o não-proprietário negociam permanentemente suas fronteiras.
A sustentabilidade digital depende de nossa sabedoria na gestão desses ecossistemas complexos emergentes.

A cultura digital e o projeto antropofágico

Por Giuseppe Cocco

Vou saquear a reflexão de alguém e doá-la. Digamos que vou "samplear".
Com efeito, me parece que a melhor resposta a essa questão foi dada, em uma entrevista recente, pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (Azougue n11 - Cultura e Pensamento - 2007): "O Criative Commons está tentando consagrar do ponto de vista jurídico o processo de hibridação". É exatamente isso. A relação entre cultura digital e diversidade é a de que a cultura digital abre e multiplica, em todos os níveis, o processo de mestiçagem, atualizando o projeto antropofágico, "o saque positivo, o saque como instrumento de criação. Eu sampleio e dou (...)". No ambiente digital, a criação aparece como sendo – sem ambigüidades sempre uma cooperação e uma projeção no futuro de algo que já existe. A diversidade é pois intrínseca à cultura digital. Ao mesmo tempo, a produção dessa diversidade é completamente relacional, reticular: uma diferenciação.

Cultura do remix e MetaReciclagem

Por Hernani Dimantas

MetaReciclagem é principalmente uma idéia. Uma idéia sobre a reapropriação de tecnologia objetivando a transformação social. Metareciclagem é sobre reciclar idéias. No contexto daquilo que chamamos cultura digital (eu particularmente prefiro cultura do remix), reciclar, modificar, transformar, copiar e colar são as variáveis que dão o substrato para essa cultura. O MetaReciclagem mais do que um projeto é uma metodologia. Todo esse processo que é 'ametareciclagem' nos remete à idéia de inquietude potencializada.Potência de querer transformar, de engajamento no espaço informacional. De apropriação e replicação das relações tranformadoras. Atuamos na arte, na política pública, na cultura... Estamos construindo um modelo de transformação social. Não se trata de um invento, de uma criação. Somos parte de um movimento colaborativo imenso. De uma imensidão de comunidades de desenvolvedores de softwares. De blogueiros, de linkadões espalhados pelo mundo com objetivos semelhantes na produção colaborativa. Muita gente ronda pelos bastidores cibernéticos.Todo esse processo começa a criar rizomas. Um modelo começa a emergir das entranhas da rede. Gosto de pensar que o paradoxo se torna paradigma no ritmo de uma cultura de remix. O conhecimento começa a se libertar das instituições. E, faz da rede um repositório colaborativo.

Diversidade cultural X interesses comerciais

Por Paulo Lima

A diversidade cultural é – e em relação a isso não pairam dúvidas – uma das maiores riquezas da humanidade e seu respeito não é só um direito dos povos mas também, num marco de diálogo e cooperação, uma condição para se avançar para a paz e convivência mundiais. A Declaração, em seus 12 artigos e 20 pontos para a construção de um plano de ação, faz um belo e útil diagnóstico dos perigos e dos rumos que a mundialização apresenta. Não só no campo das culturas, mas também expõe de maneira clara e objetiva a tensão principal: o paradoxo na relação entre o cultural e o econômico.

O tema central, a Diversidade Cultural, entendida como um direito fundamental da humanidade, regulamentada em acordo internacional, se choca frontalmente com os interesses comerciais em jogo e manejados por alguns países desenvolvidos. Nunca é demais esclarecer as coisas.

Apesar das imensas promessas que contém, a globalização ameaça a diversidade cultural. É verdade que ela facilita a circulação de bens e serviços culturais e favorece a redução dos custos de produção. Os produtos culturais assumem um lugar crescente na criação de riquezas e de emprego no mundo. O alargamento dos mercados abre perspectivas novas para os criadores de todas as origens, e o progresso das tecnologias da informação e da comunicação constitui uma oportunidade para o conjunto das culturas e das línguas, nomeadamente as das minorias. No entanto, o desenvolvimento e a liberalização dos intercâmbios internacionais, em conjunto com a convergência das tecnologias da informação e da comunicação, provocam a concentração das indústrias culturais e o aparecimento de empresas dominantes. Estas evoluções constituem uma ameaça de uniformização das culturas e de marginalização dos criadores e põem em perigo o pluralismo cultural, incluindo o linguístico. Neste quadro, torna-se urgente garantir a preservação da diversidade cultural enquanto fonte de criatividade e fator de coesão social e de desenvolvimento econômico. As políticas de apoio e de promoção cultural devem fazer com que todas as culturas tenham voz e opiniões no contexto da globalização.

É igualmente imperativo que o debate sobre a diversidade cultural não se limite ao confronto de interesses entre países tradicionalmente produtores de bens e serviços culturais. A este respeito há que reconhecer a situação especial dos países em desenvolvimento, que necessitam de uma atenção contínua ao se pretender reforçar a sua capacidade no domínio do desenvolvimento cultural, permitir-lhes desenvolver o potencial econômico da sua produção cultural e dar-lhes acesso a bens e seviços culturais que correspondam à sua própria cultura, condições essenciais para um verdadeiro diálogo entre as culturas do mundo.

9 de mai. de 2007

Cultura digital, ambiente da diversidade

Por Ana Brambilla

Enquanto alguns grupos vêem o ambiente digital como um produto ou facilitador da standardização de valores e padrões culturais por meio da globalização, é preciso reforçar a idéia e a aplicação do pensamento em rede para manter as diferenças e, mais do que isso, estimular suas manifestações.
Ao considerarmos a rede como um território comum, onde proliferam modelos horizontais de produção e disseminação do conhecimento (vide jornalismo colaborativo e software livre), este é o ambiente ideal para defender e, sobretudo, promover a diversidade. Creio que esse seja a tarefa mais urgente de quem está inserido e comprometido com uma cultura digital.

diversidadedigital@googlegroups.com

Podemos utilizar o grupo de e-mails para debater temas que ainda não foram publicados aqui. Me comprometo a postar resumo diário das discussões.

8 de mai. de 2007

Cultura erudita e cultura digital

Por Irineu Franco Perpetuo

No livro O Museu Imaginário, publicado em 1947, o escritor francês André Malraux celebra um fato que, para nós, hoje parece banal, mas que, naquela época, era uma grande inovação técnica: o livro de arte, que oferece a qualquer um, seja ele estudante ou simplesmente um leigo interessado, o acesso a uma gama de obras maior do que o acervo de qualquer museu – e jamais
disponível anteriormente na História. No século XIX, um gênio como Baudelaire nunca viu as obras-primas de El Greco, de Michelangelo ou de Goya – e, graças às reproduções presentes nos livros de arte, estes grandes nomes de repente estavam à disposição de todos. Abria-se, assim, um enorme Museu Imaginário, no qual é possível comparar, refletir, confrontar e (suspeito
que Malraux só não usou o termo porque ele ainda não existia) remixar as criações que formam o cânone artístico da Humanidade. Não parece exagero dizer que o acervo do Museu Imaginário, hoje, está depositado na internet. Seu livro trata apenas das artes plásticas, mas as ferramentas da cultura digital permitem que se fale de um Museu Imaginário em todas as áreas da criação artística. As novas tecnologias tornam possível o armazenamento, acesso e compartilhamento do Museu Imaginário das artes plásticas, do cinema, da música, da literatura. Graças à cultura digital, é possível finalmente fazer com que a cultura erudita deixe de ser uma prerrogativa de classe, e parem de cumprir uma função ornamental e de distinção social de uma elite economicamente excludente, para que suas criações sejam globalmente compartilhadas por todos. Sob esse prisma, a inclusão digital é a política que oferece um bilhete de entrada para o Museu Imaginário.

Entre a liberdade e a regulação

Por Gilson Schwartz

A diversidade cultural e, de modo geral, a democratização do acesso e das oportunidades de comunicação, criação e organização são a pedra de toque de um sistema livre, da defesa da liberdade de expressão e de melhoria nos padrões de governança na internet. Ao mesmo tempo, uma defesa absolutista da liberdade (por paradoxal que seja) leva a situações de desregulamentação completa que, nas atuais circunstâncias, tendem a favorecer os atores já consolidados econômica e culturalmente. O desafio é encontrar um meio-termo entre liberdade e regulação, defesa da diversidade e contenção dos monopólios, pluralismo com garantias democráticas.

Pontos indispensáveis para uma política pública que incentive a cultura digital

Por Cláudio Prado


1- Uma política pública de banda larga
2- Capacitação de autonomia tecnológica de indivíduos e comunidades
3- Compreensão e discussão da Cultura Livre
4- Rádios e TVs locais autônomas conectadas em rede
5- Software Livre para sustentação de tudo isso.

Cultura digital para assegurar a diversidade

Por Cláudio Prado

O Digital é um fenômeno Cultural e creio o melhor denominador da era que estamos vivendo. Ele contém um componente político/anárquico atávico. Anárquico no sentido de eliminar a necessidade de poder central, de eliminar potencialmente os intermediários que não agregam valor. Neste sentido, um índio da Amazônia, que faz cestas maravilhosas, pode encontrar pela internet, um cidadão em Viena que quer uma cesta dele. Desta forma, pode comprar do índio, por digamos 20 euros, o que hoje custa numa butique de Viena 200 euros. O índio, desta forma, estará ganhando 100 vezes o que ganha hoje quando vende para um atravessador que enche um caminhão de cestas para levar para São Paulo e que acaba numa butique de Viena pelos 200 euros.
Milhares de exemplos assim podem ocorrer quando se entende o ciberespaço como o novo centro do mundo. Substituindo o papel que coube aos grandes centros urbanos no século 20, o ciberespaço é uma nova geografia.
Neste sentido, a questão central da Cultura Digital é justamente a possibilidade de fazer renascer as culturas locais e suas manifestações através das articulações em rede, e viabilizando potencialmente a reversão da morte da diversidade que ocorreu no mundo do século 20, da massificação industrial e do consumo.

DIVERSIDADE DIGITAL E CULTURA, versão beta

Por Sérgio Amadeu da Silveira

Este é um texto, versão beta, para ser levado ao "Seminário Internacional sobre Diversidade Cultural: práticas e perspectivas", organizado pelo Ministério da Cultura em parceria com a Organização dos Estados Americanos, que ocorrerá no final de junho, em Brasília. Este seminário tratará de discutir e indicar proposições para implementar a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, da UNESCO, aprovada em 20 de outubro de 2005.
A convenção da Unesco reconheceu a necessidade de adotar medidas para proteger a diversidade das expressões culturais e enfatizou também a relação estratégica entre cultura e desenvolvimento sustentável. As manifestações e as expressões livres e libertadoras da cultura digital constituem recursos indispensáveis e essenciais para assegurar a diversidade geral das expressões culturais de nossas sociedades.
Reunindo ciência e cultura, antes separadas pela dinâmica das sociedades industriais, centrada na digitalização crescente de toda a produção simbólica da humanidade, forjada na relação ambivalente entre o espaço e o ciberespaço, na alta velocidade das redes informacionais, no ideal de interatividade e de liberdade recombinante, nas práticas de simulação, na obra inacabada e em inteligências coletivas, a cultura digital é uma realidade de uma mudança de era. Como toda mudança, seu sentido está em disputa, sua aparência caótica não pode esconder seu sistema, mas seus processos, cada vez mais auto-organizados e emergentes, horizontalizados, formados como descontinuídades articuladas, podem ser assumidos pelas comunidades locais, em seu caminho de virtualização, para ampliar sua fala, seus costumes e seus interesses.
A cultura digital é a cultura da contemporaneidade. Como bem lembrou o Ministro-hacker Gilberto Gil, em 2004, em uma aula magna na USP, "cultura digital é um conceito novo. Parte da idéia de que a revolução das tecnologias digitais é, em essência, cultural. O que está implicado aqui é que o uso de tecnologia digital muda os comportamentos. O uso pleno da Internet e do software livre cria fantásticas possibilidades de democratizar os acessos à informação e ao conhecimento, maximizar os potenciais dos bens e serviços culturais, amplificar os valores que formam o nosso repertório comum e, portanto, a nossa cultura, e potencializar também a produção cultural, criando inclusive novas formas de arte."
CULTURA DIGITAL, CIBERCULTURA E CULTURA DAS REDES
A maior construção da cultura digital é a Internet que "nasceu da improvável intersecção da big science, da pesquisa militar e da cultura libertária." (CASTELLS) Deixando evidente que desde o início, "o remix é a verdadeira natureza do digital" (GIBSON). O digital é a meta-linguagem da cultura pós-industrial que avança no interior das redes informacionais e para fora delas, do ciberespaço para a atualização em novas sociabilidades. Por isso, a cultura digital é também a cibercultura e representa o novo estágio da cultura de rede.
A cibercultura então pode ser compreendida como "a forma sociocultural que emerge da relação simbiótica entre a sociedade, a cultura e as novas tecnologias de base micro-eletrônica que surgiram com a convergência das telecomunicações com a informática na década de 70." (LEMOS) Ela também é "o movimento histórico, a conexão dialética, entre sujeito humano e suas expressões tecnológicas, através da qual transformamos o mundo e, assim, o nosso próprio modo de ser interior e material em dada direção (cibernética)". (RÜDIGER).
A Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (Convenção da Diversidade) definiu que "expressões culturais são aquelas que resultam da criatividade de indivíduos, grupos e sociedades e que possuem conteúdo cultural". Assim, pensaremos neste texto as expressões culturais da cibercultura e sua relação com a diversidade em geral.
Todos os nove objetivos da Convenção da Diversidade, relatados a seguir, têm relação direta com o desenvolvimento atual da cultura digital. São objetivos definidos pela Convenção:
a) proteger e promover a diversidade das expressões culturais;
b) criar condições para que as culturas floresçam e interajam livremente em benefício mútuo;
c) encorajar o diálogo entre culturas a fim de assegurar intercâmbios culturais mais amplos e equilibrados no mundo em favor do respeito intercultural e de uma cultura da paz;
d) fomentar a interculturalidade de forma a desenvolver a interação cultural, no espírito de construir pontes entre os povos;
e) promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e a conscientização de seu valor nos planos local, nacional e internacional;
f) reafirmar a importância do vínculo entre cultura e desenvolvimento para todos os países, especialmente para países em desenvolvimento, e encorajar as ações empreendidas no plano nacional e internacional para que se reconheça o autêntico valor desse vínculo;
g) reconhecer a natureza específica das atividades, bens e serviços culturais enquanto portadores de identidades, valores e significados;
h) reafirmar o direito soberano dos Estados de conservar, adotar e implementar as políticas e medidas que considerem apropriadas para a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais em seu território;
i) fortalecer a cooperação e a solidariedade internacionais em um espírito de parceria visando, especialmente, o aprimoramento das capacidades dos países em desenvolvimento de protegerem e de promoverem a diversidade das expressões culturais.
A DIVERSIDADE É A ESSSÊNCIA DA CIBERCULTURA
Uma das principais hipóteses de Pierre Lévy é que a cibercultura expressa o surgimento de um novo universal, diferente das formas culturais que vieram antes dele, já que ele se constrói sobre a indeterminação de um sentido global qualquer. Ou seja, a cibercultura abriga pequenas totalidades, "mas sem nenhuma pretenção ao universal". Podemos dizer que seu fundamento é a própria diversidade. Uma diversidade em contínua construção.
Entre as maiores expressões do ativismo cibercultural está o movimento conhecido como Metareciclagem. Avesso a qualquer totalização, o Metareciclagem constrói vínculos entre tecnologia e arte sem modelos predeterminados, de modo distribuído, sem imposições. Outro exemplo é o Estúdio Livre que trabalha um conceito de ambiente colaborativo, em constante desenvolvimento, que busca formar espaços reais e virtuais que estimulem e permitam a produção, a distribuição e o desenvolvimento de mídias livres. Todas as ferramentas deste ambiente são baseadas nos conceitos de software livre, conhecimento livre e apropriação tecnológica pelas comunidades de usuários.
Segundo a Convenção da Unesco, "diversidade cultural refere-se à multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Tais expressões são transmitidas entre e dentro dos grupos e sociedades. A diversidade cultural se manifesta não apenas nas variadas formas pelas quais se expressa, se enriquece e se transmite o patrimônio cultural da humanidade mediante a variedade das expressões culturais, mas também através dos diversos modos de criação, produção, difusão, distribuição e fruição das expressões culturais, quaisquer que sejam os meios e tecnologias empregados."
A expansão da cultura digital confunde-se com a expansão da Internet.
Mas a Internet foi construída sob forte influência da cultura hacker e, por isso, guarda seus traços, nos quais devemos destacar a liberdade de criação e a idéia de compartilhamento. Este espírito aberto permitiu construir o maior repositório de informações que a humanidade jamais viu. A cultura hacker gerou uma rede das redes e não uma rede única, uma rede absoluta. A diversidade dentro da colaboração foi e é um enorme feito dos arquitetos da Internet. Mas a Internet ganhou importância econômica e política e agora está sob constante ataque. Grupos e corporações gigantescas do mundo industrial querem conter a expansão da rede como um espaço de liberdade para o conhecimento e para a criação e recombinação digital da cultura. As tecnologias da informação são ambíguas. Servem ao controle e à liberdade, ao aberto e ao opaco. A cibercultura se realiza dentro deste terreno em disputa. De um lado, as operadoras de telecom querendo controlar a voz sobre IP, de outro o movimento Save the Internet, articulando a defesa da neutralidade dos protocolos da rede. As indústrias do entretenimento querendo impor o DRM e organizações como a Eletronic Frontier Foundation lutando pela liberdade de expressão e pelos inalienáveis direitos humanos na rede. Defender a diversidade cultural na rede passa pela defesa de uma cidadania digital, transnacional, e baseada na garantia dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.
DIVERSIDADE É RECOMBINANTE
O coletivo de mídia tática Critical Art Ensemble tem trabalhado desde o final do século XX com sua crítica profunda aos limites à criatividade impostos pelo sistema. Se Vannevar Bush havia nos alertado de que as nossas mentes pensam por associação, não seria estranho supor que nossa cultura realiza-se também por conexão, por constantes recombinações. De modo suficientemente claro, no texto Distúrbio Eletrônico, o Critical Art Emsemble conclama: "Deixemos que as noções românticas de originalidade, genialidade e autoria permaneçam, mas como elementos para a produção cultural sem nenhum privilégio especial acima dos outros elementos igualmente úteis. Está na hora de usarmos a metodologia da recombinação para melhor enfrentarmos a tecnologia do nosso tempo."
A diversidade depende da liberdade dos fluxos e a criatividade precisa estar desimpedida para adotar todo o potencial da interatividade que é o devir da hipertextualidade e está presente em toda a expansão da web. Uma web que caminha cada vez mais para constituir-se de múltiplas práticas colaborativas. Alex Primo, ao analisar o aspecto relacional das interações na Web 2.0, esclareceu que "a interação social é caracterizada não apenas pelas mensagens trocadas (o conteúdo) e pelos interagentes que se encontram em um dado contexto (geográfico, social, político,temporal), mas também pelo relacionamento que existe entre eles. Portanto, para estudar um processo de comunicação em uma interação social não basta olhar para um lado (eu) e para o outro (tu, por exemplo). É preciso atentar para o "entre": o relacionamento. Trata-se de uma construção coletiva, inventada pelos interagentes durante o processo, não podendo ser manipulado unilateralmente nem previsto ou determinado".
O relacionamento recombinante é conflituoso e seu sentido é imprevisível, pois a linkagem aberta ou a co-linkagem garante a liberdade e a infinita disputa de caminhos e trilhas. Mas isso é vital para a diversidade. O princípio da Convenção da Unesco de igual dignidade e respeito por todas as culturas precisa incorporar o mesmo tratamento para as culturas recombinantes, para as ciberculturas. Nunca é demais lembrar das idéias de George P. Landow, um dos grandes estudiosos do hipertexto: "Las concepciones de autoría guardam uma estrecha relación com la forma de tecnología de la información que prevalece em un momento dado, y, cuando esta cambia o comparte su dominio com otra, también se modifican, para bien y para mal, las interpretaciones culturales de autoria."
A DEFESA DO ACESSO PARA ASSEGURAR AS POSSIBILIDADES DE DIGITALIZAÇÃO DAS EXPRESSÕES CULTURAIS
Alejandro Piscitelli argumenta que a "Internet fue el primer medio masivo de la historia que permitió uma horizontalización de las comunicaciones, uma simetria casi perfecta entre producción y recepción, alterando em forma indeleble la ecologia de los medios." Este enorme feito democratizante não conseguiu ainda reverter as tendências concentradoras que se ampliam com as assimetrias sócio-econômicas. Javier Bustamante Donas, ao discutir a relação entre a cibercultura e a ecologia da comunicação, afirmou que "el acceso a Internet y su uso como vehículo de transmisión de ideas y de comunicación personal va sin duda a establecer nuevos criterios de diferenciación social entre los ciudadanos de la nueva cibercultura. Individuos, empresas, colectivos sociales que no tengan acceso por razones económicas, técnicas o de rechazo psicológico, se encontrarán en una posición precaria a la hora de definir su presente y su futuro."
Não podemos privar as comunidades locais, tradicionais ou não, bem como os artistas e produtores culturais da possibilidade de migração de sua produção simbólica para o interior da redes, para o ciberespaço. Para assegurar que a expressão das idéias e manifestações artísticas possam ganhar formatos digitais e, também, para garantir que os grupos e indivíduos possam criar, inovar e re-criar peças e obras a partir do próprio ciberespaço, são necessárias ações públicas de garantia de acesso universal à rede mundial de computadores. Sem inclusão digital de todos os segmentos da sociedade, a cibercultura não estará contemplando plenamente a diversidade de visões, de expressões, de comportamentos e perspectivas.
Bem alertou-nos Javier Bustamante que "sin una pluralidad de fuentes no se puede hablar de libertad de pensamiento, conciencia o religión. Sin acceso a medios de alcance internacional no tiene sentido hablar de libertad de opinión y de difusión de las mismas sin limitación de fronteras". Por isso, a cultura da diversidade digital é ampliada pelas práticas de compartilhamento de conhecimento, de tecnologias abertas, de expansão de telecentros, de oficinas de metareciclagem, de pontos de cultura. Essas iniciativas precisam ser amplificadas, uma vez que executam o princípio do acesso eqüitativo presente na Declaração da Unesco: "O acesso eqüitativo a uma rica e diversificada gama de expressões culturais provenientes de todo o mundo e o acesso das culturas aos meios de expressão e de difusão constituem importantes elementos para a valorização da diversidade cultural e o incentivo ao entendimento mútuo".
Quanto maior a inclusão digital da sociedade, maiores serão as possibilidades da diversidade cultural. Quanto maior a liberdade para as práticas colaborativas na rede, wikis, softwares livres, ações P2P, blogs, espectro aberto, mais extensa será sua inteligência coletiva criativa.
REALIDADES ALTERNATIVAS, SIMULAÇÕES E MÚLTIPLAS IDENTIDADES
A cultura digital envolve a simulação, as realidades virtuais e as realidades alternativas. Ciborgues não são somente metáforas, como nos ensinou Donna Haraway. A crise das identidades que ocorria já nas sociedades industriais evoluiu para um cotidiano pendular entre identidades ausentes e anonimato, de um lado, e múltiplas identidades, de outro.
Jogos em rede envolvem milhões de pessoas, avatares se enfrentam e se articulam em um cenário virtual onde também estão inseridas as diversas comunidades virtuais de relacionamento, e que criam caminhos de mão dupla virtual-atual e presencial-ciberespacial.
Nesse cenário, de ausentes e múltiplos, de choque de sociabilidades, é que também devemos enfatizar o papel das identidades únicas e das identidades étnicas. A riqueza da diversidade dependerá do fortalecimento de diversos elementos constitutivos das identidades coletivas que compõem uma cultura. A Convenção da Unesco recordou "que a diversidade lingüística constitui elemento fundamental da diversidade cultural". Então, a diversidade digital exige a produção de conteúdo em diversas línguas e dialetos em sites, portais, na blogosfera, na videosfera e nos ambientes de realidade alternativa.
ASSEGURAR A LIBERDADE DOS FLUXOS, DO CONHECIMENTO E DA CRIAÇÃO
Eugenio Trivinho nos alertou que "ao mesmo tempo que a miniaturização das tecnologias comunicacionais permite o maior poder de movimentação nas cidades reais, materiais, gera também um maior efeito de ilusão de liberdade. Para evitar confusão: um contexto histórico que confere mobilidade corporal assistida pela potência da comunicação à distância nem por isso concede maior liberdade aos indivíduos, ou uma liberdade genuína, isenta de constrangimentos, coações e controles". (112-113) No cenário da cibercultura, a liberdade exige arquiteturas abertas aos fluxos de conhecimento. Nunca foi tão possível compartilhar conhecimento quanto na era das redes informacionais.
Nunca foi tão rápido, barato e fácil trocar informações. Os economistas da informação sabem que o principal insumo da informação é a própria informação. A matéria-prima do conhecimento é a própria informação codificada ou conhecimento. A informação não possuí as restrições limitadoras dos bens materiais. Informações, desconhecem a escassez e o desgaste no uso. Podem ser usadasde modo ilimitado e reproduzidas a custo zero.
Exatamente estas características inerentes aos bens informacionais, ou seja, as informações é que são combatidas pelos gigantes da era industrial. Buscam realizar uma cruzada pelo enrijecimento das leis de propriedade das idéias, por criminalizar o compartilhamento de idéias, de algoritmos e de criações artísticas. Invadem centros acadêmicos à procura de cópias xerox de livros e retrocedem na interpretação do uso justo do conhecimento.
Esses guerreiros da propriedade privada das idéias, esquecem que, ao contrário dos bens materiais, o conhecimento cresce quando é compartilhado. Provavelmente desconsideram a brilhante explicação de George Bernard Shaw, dramaturgo e crítico literário irlandês: "Se você tem uma maçã e eu tenho uma maçã e trocarmos estas maçãs, então eu e você teremos ainda apenas uma maçã. Mas se eu tenho uma idéia e você tem uma idéia, e trocarmos nossas idéias, então cada um de nós terá duas idéias".
A cibercultura para avançar precisa derrubar as barreiras da liberdade de conhecimento. As redes não podem ser malhas de uma "informática da dominação", termo bem cunhado por Donna Haraway. A biotecnologia não deveria construir seu caminho baseando-se na modelo de negócios dos alimentos transgênicos, que buscam controlar, por meio de patentes, o conhecimento sobre as formas de reprodução da vida. A opacidade dos códigos (softwares, protocolos e padrões) é grave. Como bem alertou-nos o jurista Lawrence Lessig, "no ciberespaço o código é a lei".
Lessig ao analisar como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cultura e controlar a criatividade, escreveu que a "oportunidade para criar e transformar está enfraquecida em um mundo no qual a criação depende de permissão judicial, e a criatividade precisa sempre consultar um advogado." (183) Para evitar uma anemia cultural generalizada promovida pelas tentativas de controlar privadamente o conhecimento e a cultura é que crescem mobilizações como o Creative Commons, um movimento de licenciamento que busca reequilibrar o cenário de propriedade intelectual, dando maior espaço às características básicas da cultura digital, entre elas a recombinação, o sampling, a liberdade de cópia.
A ECONOMIA DA CIBERCULTURA É BASEADA NO RELACIONAMENTO E NÃO NA PROPRIEDADE
John Perry Barlow, letrista, músico, ciberativista, autor do Manifesto de Independência do Ciberespaço, fundador da Eletronic Frontier Foundation, escreveu os princípios da economia de uma cultura digital, de uma cibercultura. Barlow captou a tendência de a economia se basear cada vez mais em serviços. Nela, o valor da propriedade perde força diante dos valores do relacionamento.
Ele escreveu que "a maioria de nós vive hoje graças à inteligência, produzindo 'verbos', isto é, idéias, em vez de 'substantivos', como automóveis e torradeiras.(...) Médicos, arquitetos, executivos, consultores, advogados: todos sobrevivem economicamente sem serem 'proprietários' de seu conhecimento [...] É um consolo saber que a espécie humana conseguiu produzir um trabalho criativo decente durante os 5.000 anos que precederam 1710, quando o Estatuto de Anne, a primeira lei moderna de direitos autorais, foi aprovada pelo Parlamento Britânico. Sófocles, Dante, da Vinci, Botticelli, Michelangelo, Shakespeare, Newton, Cervantes, Bach – todos encontraram motivos para sair da cama pela manhã, sem esperar pela propriedade das obras que criaram".
Sua conclusão é empiricamente consistente: "Mesmo durante o auge do direito autoral, conseguimos algo bastante útil de Benoit Mandelbrot, Vint Cerf, Tim Benners-Lee, Marc Andreessen e Linus Torvalds. Nenhum deles fez seu trabalho pensando nos royalties. E há ainda aqueles grandes músicos dos últimos cinqüenta anos que continuaram fazendo música mesmo depois de descobrir que as empresas fonográficas ficavam com todo o dinheiro [...] relacionamento, junto com serviço, é o centro daquilo que suporta todo tipo de "trabalhador moderno do conhecimento".
Na economia digital colaborar é mais eficiente que simplesmente competir. Um número crescente de empresas está percebendo as enormes vantagens das práticas colaborativas para a inovação e a manutenção de seus negócios. As redes informacionais viabilizam novas práticas sociais e de geração de riquezas que eram difíceis e até impossíveis de se implementar na chamada era industrial.
O professor de direito da Universidade de Yale, Yochai Benkler, no livro The Wealth of Network, disponível na web, demonstrou que uma série de mudanças nas tecnologias, na organização econômica e na produção social estão criando novas oportunidades e possibilidades de produzir informação, conhecimento e cultura. Essas mudanças, segundo Benkler, estão ampliando o papel da produção não-proprietária e colaborativa, realizada por indivíduos isolados e por esforços cooperativos de milhares de pessoas. É o caso, por exemplo, do desenvolvimento de software livre, uma típica criação da cultura digital.
O modelo de desenvolvimento e uso de software livre se baseia na colaboração. Programas de computador extremamente complexos são criados e mantidos por comunidades de interessados. Um dos seus maiores exemplos, o GNU/Linux, é um sistema operacional livre, mantido por aproximadamente 150 mil pessoas espalhadas pelo planeta. Como todo e qualquer software, o GNU/Linux precisa ser atualizado constantemente para acompanhar a evolução dos computadores e demais softwares. Antes que uma nova versão do GNU/Linux seja considerada estável, ela é testada e corrigida por uma comunidade gigantesca de apoiadores. As chances de ter suas falhas mais rapidamente encontradas e superadas é bem maior do que no modelo proprietário e fechado. A qualidade das versões está diretamente vinculada à quantidade da inteligência coletiva agregada na rede mundial de computadores. Sem dúvida, a coordenação do processo é o elemento mais sensível e complexo das práticas colaborativas em rede.
O que cada colaborador doa, em tempo de trabalho, para o desenvolvimento do GNU/Linux é bem menor do que obtém de retorno. Essa lógica levou ao antigo Big Blue, a IBM, e outras grandes corporações a apostarem no desenvolvimento colaborativo. Apache é um dos maiores sucessos mundiais do software livre. Ele serve para hospedar páginas da web e está presente em mais de dois terços dos servidores web do planeta. Imbatível. Obteve esta posição sem gastar um centavo em propaganda. Nunca precisou, ele é desenvolvido colaborativamente e sua estabilidade é incomparavelmente superior ao do concorrente proprietário.
CULTURA DIGITAL E CIBERESPAÇO: AS FRONTEIRAS COM OS ESTADOS-NAÇÃO
A Internet carrega e conecta os fluxos da cultura digital, transitando pelas diversas infra-estruturas dos países controlados por Estados nacionais. Todavia, a rede é transnacional. Construída sob forte influência da cultura hacker para ser livre, conectada por protocolos de comunicação que buscam manter liberadas as vias de compartilhamento de dados e interação de informações. A internet é o corpo do ciberespaço.
Mas os tempos de globalização, de auge das tentativas de desmonte geral do que é público, de prevalência do privado, de expansão do consumismo totalitário, do desrespeito ao local e às culturas tradicionais, gerou fortes reações, algumas de reprodução em larga escala da intolerância. Reforçou-se o cenário de ambivalências. Estados Nacionais poderosos e megacorporações tentam criar condições para controlar os fluxos das redes, a Internet. Totalitários de plantão reúnem argumentos para interferir nos protocolos, na independência de cada uma das camadas que compõem a rede, para vigiar os pacotes de informação, para manter ditaduras ou níveis de lucratividade. Tanto faz!
O ciberespaço precisa ser livre. O acesso precisa ser livre. A navegação precisa ser livre. A governança da Internet é também a governança do ciberespaço. Ela não pode representar um retrocesso nas liberdades conquistadas, do contrário, teremos ataques à criatividade, ao compartilhamento de informações, à diversidade de manifestações e expressões da cultura digital. A defesa da diversidade digital passa pela defesa de um modelo de governança da rede que seja multistakeholder, que garanta o peso devido às organizações da sociedade civil mundial de interesse público, que assegure uma cidadania digital global, que mantenha as liberdades fundamentais do homem.
O importante princípio da soberania nacional inserido na Convenção da Unesco não pode ser usado para anular o princípio da abertura e do equilíbrio, segundo o qual "ao adotarem medidas para favorecer a diversidade das expressões culturais, os Estados buscarão promover, de modo apropriado, a abertura a outras culturas do mundo e garantir que tais medidas estejam em conformidade com os objetivos perseguidos pela presente Convenção".¨
COMO APOIAR A CULTURA DIGITAL NA PERSPECTIVA DA DIVERSIDADE. QUAIS OS PARAMETROS PARA POLÍTICAS PÚBLICAS ADEQUADAS?
É necessário estruturar políticas públicas que incentivem a cultura digital.
Os fundos de tecnologia e telecomunicação devem assegurar linhas especiais de pesquisa e de produção de tecno-arte, de tecnologias abertas e livres. Devem estudar formas jurídicas adequadas para o financiamento de projetos de coletivos tecnológicos, tais como para as comunidades de software livre, de meta-reciclagem, de midia-ativismo e cibercultura, bem como, os coletivos de conexão cooperativa.
É preciso assegurar que as comunidades tenham recursos para portar seus conteúdos para a rede informacional. Daí a importância decisiva dos estúdios livres de cibercultura.
É fundamental construir uma política de convergência digital para o que é comum, para a sociedade civil, para digitalizar as rádios e TVs comunitárias, para garantir experimentos comunitários de conexão aberta.
É importante incentivar a expansão das cidades digitais.
É vital garantir que sejam expandidas as faixas de frequência do espectro radioelétrico para uso comum. A sociedade precisa discutir o destino das faixas de freqüência que estão sendo utilizadas atualmente pelas emissoras de TV para transmissão analógica. Quando a implantação da TV digital estiver completa, estas faixas poderão ser transformadas em espectro aberto, em via de uso comum, com o uso de rádios transmissores, receptores inteligentes e outras tecnologias digitais.
É preciso incentivar a produção de conteúdos digitais para a mobilidade, para o cenário de realidades alternativas, jogos em rede e digitalização crescente do broadcasting, bem como, para a expansão das webTVs distribuídas.É preciso incentivar o crescimento do domínio público, bem como, garantir a liberdade para o conhecimento e a cultura.
COMO GARANTIR A EXPANSÃO DA PESQUISA DA CIBERCULTURA?
O Ministro da Cultura Gilberto Gil, na aula inaugural que realizou na USP, no dia 10 de agosto de 2004, afirmou que "é hora de a pesquisa científica acerca da cultura conquistar novos vôos, ganhar maior consistência, rigor e autonomia.
É preciso pensar a universidade também como um 'locus' da cultura, seja das expressões artísticas, seja da difusão, ou reflexão, ou da preservação." Nesse sentido, é preciso pensar propostas que garantam a ampliação da pesquisa da cultura digital.
É preciso articular mais pesquisas básicas e experimentais, multidisciplinares, que ampliem a compreensão das tecnologias de informação e comunicação em um contexto de redes e da cultura digital.
É preciso criar nós e articulações mais freqüentes entre os vários atores e pesquisadores de cibercultura.É preciso incentivar redes de pesquisa da cultura digital.
É preciso criar encontros, desconferências, festivais, prêmios e incentivos à pesquisa da cibercultura e sua relação múltipla com diversos contextos.
POR UM PACTO PELA LIBERDADE PARA O CONHECIMENTO E A CRIAÇÃO
A cultura digital é a cultura que trabalha com a plena criatividade. Não está limitada ao ideal romântico de originalidade exclusiva, espalha-se pela idéia de recombinação, de remixagem, de fusão, de derivação, de destruição de todos os entraves à criação, de obra contínua, ilimitada, fundamentalmente aberta. Trata da novidade e da reconfiguração. Cultiva a colaboração e o compartilhamento tal como o antigo ideal científico. A ciência pouco avançaria se não fosse ela própria cumulativa e recombinante. A cultura digital é a aproximação da ciência e da cultura, mediada pelas tecnologias informacionais.
A liberdade para o conhecimento, a transparência para os códigos que intermedeiam a comunicação humana, a criação sem entraves, a superação da mercantilização totalitária da cultura, as possibilidades simuladoras e emancipadoras do ciberespaço são fundamentos que devemos defender se quisermos um mundo de riqueza da diversidade.
Cultura digital, anti-totalitária, depende da liberdade para o conhecimento e para a criação.